terça-feira, 8 de abril de 2008

AS LETRAS DE CHICO BUARQUE.

Em um exercício de imaginação e colagem poética, Cultura esboça um texto autobiográfico, no qual Chico Buarque sugere que sua vida e sua arte sempre andaram juntas
Meus caros amigos me perdoem, por favor / Se eu não lhes faço uma visita / Mas como agora apareceu um portador / Mando notícias nesse texto. Fazer 60 anos não é fácil, continuo procurando um lugar, uma espécie de bazar / Onde os sonhos extraviados / Vão parar / Entre escadas que fogem dos pés / E relógios que rodam pra trás. A vida, afinal, é como a mulher - curiosa, tonta e colorida. E olha que eu não peço muito: Pra mim basta um dia / Não mais que um dia / Um meio dia / Me dá / Só um dia / E eu faço desatar / A minha fantasia.
No início, lá por 1964, havia muita que exigia que eu ficasse trocando em miúdos o que pensava. Lembram da Carolina? Lembram que Caetano, Gil e os Mutantes achavam que eu era um alienado? Depois, todos nos tornamos caros amigos, mas houve um momento, lá por 1969, que deixei claro meu rumo. Rugi que eu queria não cantar / A cantiga bonita / Que se acredita / Que o mal espanta / Dou um chute no lirismo / Um pega no cachorro / E um tiro no sabiá / Dou um fora no violino / Faço a mala e corro / Pra não ver banda passar.
Lembram que época difícil? Era uma roda-viva, tipo aquelas em que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / ... / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino pra lá. Lembra como era difícil mandar no destino, nos anos 70? O regime militar ainda não havia passado - longe disso. E lá fui eu, para Roma, com Marieta e as crianças. Cruzei o oceano mas deixei uma maldição para os que me perseguiam: "Você vai saber de mim / Mambembe, cigano / Debaixo da ponte, cantando / Por baixo da terra, cantando / Na boca do povo, cantando". A saudade batia forte, me fazia mandar recados para a terrinha, me fazia pedir ajuda ao Vinicius para criar um lamento: "Vai meu irmão / Pega esse avião / Você tem razão / De correr assim / Desse frio / Mas beija / O meu Rio de Janeiro / Antes que um aventureiro / Lance mão".
Mas nunca deixei de denunciar, não por gosto ou desfeita - mas porque a ética regia minha estética na época. Eles eram gente de rosto escuro: enterravam suas vítimas no mar. Eu reagia cantando a dor das mães de quem era supliciado: "Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho / Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar". Às vezes era engraçado, como quando mudei meu nome para Julinho da Adelaide. Tentei e consegui enganar Dona Censura, e o Brasil cantou amargamente "Que o bicho é brabo e não sossega / Se você corre o bicho pega / Se fica não sei não / Atenção / Não demora / Dia desses chega a sua hora". Meus olhos cor de ardósia - pausa na modéstia - faziam tanto sucesso que eu podia chegar para um dos presidentes da República e dizer "Você não gosta de mim / Mas sua filha gosta".
Meus versos, levei 60 anos para descobrir isso de coração, sempre andaram de mão com o brasileiro, foram um diário de uma nação. Como quando registrei a ressaca da campanha das Diretas, criando um samba com minha cabeça já pelas tabelas. Mas claro que ninguém se tocou com minha aflição / Eu via todo mundo na rua de blusa amarela. A partir dos anos 90, meu compromisso já não era tanto com a liberdade democrática, mas com a liberdade de criar, me orgulhava de desfilar na praça outra vez / Caminhando na ponta dos pés / Como quem pisa nos corações / Que rolaram dos cabarés.
Continuei jogando futebol, escrevi livros, fiz filhos e plantei esperanças, mas não deixo de sentir. Continuo tocado pela vocação de ser artista, tradutor da dor, caro amigo com talento. Sei que meus 60 anos estão multiplicados no peito de cada um de nós. E estou aliviado por confirmar que eu estava certo quando escrevi: "Imagino o artista num anfiteatro / Onde o tempo é a grande estrela / Vejo o tempo obrar a sua arte / Tendo o mesmo artista como tela".
Mas não me levem a sério: fiz o que fiz só para poder, um dia, escrever um verso superlativo de despretensão. E vou aproveitar as prerrogativas de aniversariante até a última linha. Lá vai: "Tem um japonês trás de mim"...

Para construir este texto, foram usados versos das seguintes músicas de Chico Buarque: Meu Caro Amigo, 1976; A Moça do Sonho, 2001; Vai Levando, 1975; Basta um Dia, 1975; Trocando em Miúdos, 1978; Carolina, 1967; Agora Falando Sério, 1969; Roda Viva, 1967; Mambembe, 1972; Samba de Orly, 1970; Angélica, 1977; Acorda Amor, 1974; Pelas Tabelas, 1984; A Volta do Malandro, 1985; Tempo e Artista, 1993; e Bye Bye, Brasil, 1979.
(POSTADO POR JANAÍNA - ENCAMINHADO POR RUDI)

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